“Governe seu mundo” – Introdução

de Sakyong Mipham

Introdução

Trazer o céu para a terra, para a vida cotidiana, é assim que governamos nosso mundo.

RECENTEMENTE, VISITEI meus amigos Adam e Allie, pais de Javin, que tem dois anos de idade. Perguntei-lhes como estavam se saindo como pais, e eles responderam que o que mais os impressionava era o fato de que Javin parecia conhecer as coisas naturalmente.“Nós não o ensinamos — ninguém o ensinou. É como se viesse de algum lugar”, disseram. Como seres humanos, somos bastante sábios. Nossa mente é vasta e profunda. Nos ensinamentos sobre o governar, essa sabedoria inata é conhecida como “bondade fundamental”. É o nosso estado de ser natural, límpido, despojado. Todos temos os atributos do céu — grande abertura e grande brilho. Trazer esse céu para a terra, para a vida cotidiana, é assim que governamos nosso mundo.

Dawa Sangpo, o primeiro rei do antigo reino de Shambhala, no Himalaia, certa vez suplicou ao Buda que lhe concedesse orientação espiritual. “Sou um rei”, disse. “Tenho um palácio, família, ministros, súditos, um exército e um tesouro. Quero alcançar a iluminação, mas não posso abandonar minhas responsabilidades para seguir a prática espiritual num mosteiro. Por favor, ensine-me a utilizar a vida no mundo como meio para obter a iluminação.”

O Buda garantiu ao rei que ele não teria de tornar-se um asceta ou um monge para atingir a iluminação. Na verdade, poderia praticar o caminho espiritual e cumprir com suas muitas responsabilidades. Poderia se tornar um sakyong — um governante que governa mantendo o equilíbrio entre o céu e a terra. O céu é a sabedoria. A terra é a experiência prática. Quando trazemos sabedoria à vida secular, atingimos o sucesso — tanto espiritual como mundano. O Buda disse ao rei: “Não seja preconceituoso. Olhe para o seu país, olhe para o seu povo. Se for capaz de desenvolver certeza na indestrutível bondade fundamental que reside no coração de tudo, então poderá governar o seu mundo. Porém, o caminho para tornar-se um sakyong apresenta muitos desafios, pois a vida no mundo está sempre cobrando decisões e o tempo todo oferec distrações”. O rei Dawa Sangpo levou a sério essas instruções e desenvolveu certeza na visão da bondade fundamental. Essa visão transformou o seu reino, pois trouxe inspiração e significado para a vida das pessoas.

Meu pai, o Vidyadhara Chögyam Trungpa Rinpoche — que nasceu monge e morreu como sakyong —, levou trezentas pessoas para fora do Tibete em 1959, tendo no seu encalço os comunistas chineses. Eles escalaram montanhas, uma depois da outra, transpondo as espessas camadas de neve e suportando o frio rigoroso. Quando o suprimento de alimentos se esgotou, ferveram e comeram suas sacolas feitas de couro de iaque. Algumas pessoas do grupo morreram; outras foram capturadas pelos chineses. Perderam muitos de seus bens pessoais, entre eles um manuscrito de mil páginas sobre os ensinamentos de Shambhala, que Rinpoche havia escrito e que foi engolido por um rio. Minha mãe contava que, apesar do sofrimento, estavam sempre de bom humor. Finalmente, cruzaram a fronteira e entraram na Índia. Depois de muitos outros apuros, Rinpoche acabou vindo para o Ocidente, onde introduziu esses ensinamentos.

Meu pai educou-me segundo as diretrizes tradicionais que o Buda estabelecera em suas instruções a Dawa Sangpo, continuando a linhagem de Shambhala, do guerreiro bodhisattva e do governante iluminado. É uma linhagem de destemor: não tememos nosso poder de unir o céu e a terra. Certos ensinamentos são feitos para certas épocas. Os ensinamentos de Shambhala surgiram no Ocidente, precisamente nesta época, com o propósito de pacificar a agressão, que obstrui a capacidade de amar uns aos outros e cuidar uns dos outros. A agressão gera o medo. O medo gera a covardia; temos medo até dos pensamentos e somos, por isso, governados por eles. Os ensinamentos de Shambhala contam como estabelecer a paz e a confiança. No potencial para descobrir a bondade fundamental e gerar sabedoria e compaixão na vida cotidiana, todos temos aquilo de que precisamos para nos tornarmos sakyong — palavra tibetana que significa “protetor da terra”. O que estamos protegendo é a terra de nossa sanidade inata.

Se para governar nosso mundo precisamos desenvolver certeza na sanidade, como encontrá-la? Os ensinamentos de Shambhala nos instruem a “colocar a mente subjugada pelo medo no berço da bondade amorosa”. O ambiente mais amoroso que podemos criar está sobre o assento no qual meditamos. Meu pai ensinou-me a meditar quando eu era criança. No início, isso significava apenas reservar certo tempo do dia para refletir sobre meus sentimentos. Em seguida, aprendi a estabilizar a mente fixando a atenção na respiração. Quando consegui executar essa técnica com precisão, ensinou-me a contemplar a impermanência, o sofrimento, o carma, o desprendimento e a compaixão. Quando eu tinha cerca de doze anos, ele me instruiu a meditar e contemplar durante uma hora por dia. Mais tarde, aumentou a duração das sessões para duas horas. Às vezes, eu meditava durante vários dias, e cheguei a passar semanas e até mesmo meses meditando. Como a meditação deveria ser o sustentáculo da minha futura vocação, eu tinha tempo para dedicar-me a ela dessa maneira.

Quando adolescente, expliquei ao meu pai que queria acampar sozinho numa região agreste. Depois de ponderar a respeito por alguns dias, ele disse que a ocasião era propícia. Como pai, estava orgulhoso do meu desejo de explorar o mundo por conta própria e também preocupado com minha segurança. Para ter certeza de que eu seria capaz de carregar uma mochila pesada, ele a encheu de coisas e me fez subir e descer correndo as escadarias algumas vezes. Quando ele ficou satisfeito, eu parti, sentindo-me exuberante.

Caminhei durante cerca de uma semana. Raras vezes cruzava com alguém e enfrentei todo tipo de mau tempo — vento, chuva, granizo. Sentia-me surpreendentemente feliz. Como cresci rodeado de muitas pessoas, sempre me instruíram, alimentaram e serviram. O sentimento de solidão ajudou-me a apreciar o que os outros faziam por mim. Também comecei a descobrir minha própria força como um guerreiro de Shambhala em meu caminho para tornar-me um governante. A natureza foi uma excelente mestra, nunca facilitando tarefas que cabiam a mim realizar. Se quisesse comer, tinha de preparar a refeição; se quisesse dormir, tinha de pensar nisso antes e encontrar um local apropriado para acampar.

Quando retornei, todos ficaram aliviados, animados e orgulhosos. Embora a viagem tenha sido curta, meu crescimento foi tremendo. Nos difíceis desafios que as intempéries e adversidades me impuseram, éramos só minha mente e eu. Eu havia descoberto minha própria confiança, e graças a ela comecei a confiar na minha bondade fundamental.

Seguindo as diretrizes tradicionais para a educação de um futuro governante, meu pai me ensinara também poesia e caligrafia. Certo dia, enquanto estávamos debruçados no parapeito de uma janela em nossa casa no Colorado, olhando para um prado e alguns pinheiros, um beija-flor apareceu. Esvoaçou em várias direções e saiu em disparada. Meu pai voltou-se para mim e disse: “Hoje, ensinarei você a escrever poesia”. Continuo a praticar e desfrutar essa arte, bem como a caligrafia. Essas artes são um aprofundamento, e ensinam-nos a expressar o inexprimível — o amor, a impermanência, a beleza. Quando mergulhamos nas profundezas do nosso ser, conferindo forma física à precisão da meditação, descobrimos as profundezas da vida.

Além disso, meu pai garantiu meu treinamento em artes marciais — a disciplina física da meditação em movimento, que nos ajuda a ficar menos isolados na mente. A prática de esportes ou artes marciais proporciona uma confiança natural. Desenvolvemos um laço de afinidade e de apreciação com os amigos. Respirar ar fresco e aprender a sincronizar a mente e o corpo ajudam a desenvolver um saudável sentido do “eu”, e isso nos permite aumentar ainda mais a confiança. Podemos então oferecer esse entendimento a outras pessoas. Aprendi a arte japonesa de manejar o arco-e-flecha — kyudo. No início, não tínhamos permissão nem mesmo para segurar o arco e a flecha. Em seguida, durante o primeiro ano de prática, atirávamos em um alvo situado a apenas dois metros de distância — a idéia era que, se conseguíssemos desenvolver a forma apropriada, atingir o alvo não seria problema. Por fim, passávamos a atirar em um alvo a 23 metros de distância.

A criação de um governante difere do método convencional da educação, que considera a mente como uma caixa vazia à espera de ser preenchida. Certa vez, meu pai disse a um de meus tutores que, na criação de um futuro sakyong ou sakyong wangmo — rei ou rainha protetores da terra —, estamos educando o céu. O céu percebe, entende e abrange tudo. Não há fronteiras — somente possibilidades. Portanto, não é uma tarefa árdua educar-nos para sermos um sakyong. É uma atividade repleta de apreciação, curiosidade e deleite. Estamos cultivando a certeza na bondade fundamental e desenvolvendo nossas qualidades nobres. Quando nos ligamos à bondade fundamental, ela inspira cada alento, cada ação e cada pensamento nosso. Com o brilho e a confiança que disso resulta, podemos realizar tudo o que queremos. É assim que governamos o nosso mundo.

Sakyong Mipham, Governe seu mundo: estratégias antigas para a vida moderna.
Tradução de Newton Roberval Eichemberg. Revisão técnica: Shambhala Brasil — Comissão de Tradução. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ISBN 85-7827-042-1